Iniciativas feitas por e para mulheres compõem várias atividades no cotidiano de Belém, entre oficinas, cursos e serviços. Juntas, elas buscam mais espaços para se expressar.
Alguns cursos e oficinas, cooperativas de táxis e revistas são elementos que, de tão corriqueiros no ritmo diário da cidade, passam sem serem notados. A diferença, neste caso, é que eles são todos conduzidos apenas por mulheres. E mais que isso: são direcionados prioritariamente a mulheres. O feminismo vem se fortalecendo em Belém através de iniciativas que buscam outras formas de organização frente ao modelo patriarcal que, historicamente, favorece aos homens. São mulheres que sentem a necessidade de ampliar as suas possibilidades e formar uma rede junto de outras mulheres a partir de trocas e compartilhamento de experiências e conteúdos, além de autogestão.
Somente na semana passada, pelo menos duas oficinas e cursos tiveram como público alvo as mulheres. Foi o caso da oficina “Autodefesa para mulheres e outras corporalidades em risco”, organizada pelo coletivo Vacas Profanas, e o curso “Mulher pode ser drag? Empoderamento feminino e desconstrução de gêneros pela arte drag”, com a jornalista e escritora Monique Malcher, que facilitou a primeira ação com este tema na cidade. Aos domingos, na praça da República, é possível curtir o batuque do grupo “Mulheres do fim do mundo”, coletivo que nasceu de uma oficina de canto feminista.

O trabalho da grafiteira Michelle Cunha: inserção em um espaço em que a mulher geralmente se sente vulnerável.
Estes são somente alguns exemplos recentes de uma cena que está crescendo e se fortalece cada vez mais em Belém. Os cursos, as oficinas e as iniciativas de e para mulheres não se referem apenas à inserção no mercado de trabalho. Ideias e projetos como esses extravasam para debates e espaços alternativos, intelectuais, artísticos e mesmo marginalizados. É que a simples presença e a representatividade femininas, em palcos antes dominados por homens, são uma transgressão necessária para a construção de novos valores.
NO PALCO
“Por que só para as mulheres? Todo mundo pergunta isso. Eu falo que a gente tem que equilibrar as coisas, ter mais artistas mulheres fazendo drag pra equiparar, para correr igualitário, juntos, mas mostrar também que o gênero não importa na arte”, explica a escritora Monique Malcher sobre o curso que terminou na semana passada no SESC e teve, ainda, uma apresentação final com as participantesmontadas em suas novas personagens drags. Segundo ela, muitas não imaginavam ser capazes de fazer isso, ou tinham medo de se expor: “Mas no final elas se doaram, elas viram isso como uma possibilidade de se libertar, de dizer ‘esse é o meu corpo, mas eu vou falar da forma que eu quiser’”, comenta.
Monique iniciou como drag a partir das festas do coletivo Noite Suja, quando montou sua personagem “Cílios de Nazaré”, a partir da necessidade de colocar o “corpo em ação”. “E, então, eu pensei: eu não quero mais me esconder, não quero mais usar só as palavras, quero também mostrar que eu tenho o meu corpo como forma política e posso falar através dele.”
São mulheres que sentem a necessidade de ampliar as suas possibilidades e formar uma rede junto de outras mulheres a partir de trocas e compartilhamento de experiências e conteúdos, além de autogestão.
Ela comenta que o palco foi um espaço negado por muito tempo às mulheres, assim como a própria cultura drag que, mesmo marginalizada, também é masculina. “Quanto ao machismo, existe, sim, mas não entre as drags”, inicia Monique. “Existe o machismo tanto do homem hétero, que vê a drag como um objeto sexualizado, porque os homens mexem com ela, tem assédio, agressão. Mas também existe uma coisa que a gente precisa falar que é o machismo no meio LGBT, porque acham que esse é um território somente de homem gay, quando qualquer um pode fazer drag, de qualquer sexualidade”, pondera a jornalista.
NA RUA
A artista paraense Michelle Cunha já ofertou cinco oficinas de grafite para mulheres. Ela diz que o espaço da arte de rua também é um ambiente de domínio masculino, mas que isso está mudando. “Essa história de você estar aprendendo com outra mulher é como se quebrasse um pouco essa timidez, essa falta de coragem, e acho que se torna mais fácil. É por isso que eu estou tendo uma resposta muito grande em relação a isso, sempre tem muitas meninas interessadas”, avalia Michele Cunha, lembrando que a rua, onde a prática do grafite acontece, é um ambiente em que a mulher sente vulnerabilidade.

A grafiteira Michelle Cunha já ofertou cinco oficinas de grafite para mulheres.
Segundo ela, a cena feminina no grafite foi muito influenciada pela vinda da grafiteira Dninja, de Minas Gerais, no ano de 1994, quando houve o primeiro Encontro de Cultura de Rua, em Belém. O evento foi marcante para o surgimento de uma cena entre elas. “Outras mulheres que viram uma mulher grafitando e começaram a grafitar e hoje são super fortes na cena: a Drika Chagas, a Mina Ribeiro, a Celly estavam nesse início”, conta. Ela também aponta como marco a formação da Freedas CREW, um coletivo de mulheres que nasceu de suas oficinas há um ano e hoje atua na cidade.
Também no ambiente da rua, mas em outra atuação bem diferente, está a cooperativa Lady’s Taxi, que está há quatro meses em atividade nas ruas de Belém. O público feminino é o principal cliente. A motorista e cooperada Andreza Araújo conta que a demanda maior é “por segurança principalmente”. “Nos relatos das clientes que eu venho pegando, 99% reclamam por assédio de outros taxistas homens. Ainda mais quando sai de festa meio bebida”, conta a taxista. A cooperativa é a primeira do Brasil somente com mulheres e cuja frota já conta com 14 táxis.

Andreza Araújo, do Lady’s Taxi: serviço voltado principalmente para mulheres para evitar o assédio das passageiras.
NA WEB
Fora das ruas, muitas mulheres vêm se organizando também em espaços virtuais, blogs e páginas nas redes sociais, como forma de ter voz em plataformas mais democráticas e abrangentes. A escritora paraense Paloma Franca Amorim, que mora em São Paulo, organiza a revista virtual Eneida, projeto recente que publica mulheres. “As categorias são importantes agora enquanto estratégia política, mas acho que a ideia da Eneida, inclusive em relação a essa temática de gênero, é, sobretudo, usar nossa cabeça pra falar o que a gente quiser, do jeito que a gente quiser”, explica a escritora.
Na visão da Paloma, a mulher tem uma força muito grande ao produzir uma representação sobre si. Isso, para ela, é um avanço incontestável. No entanto, ela aponta que o machismo também está presente quando se tenta segregar a criação literária dela e de outras escritoras feministas como literatura de gênero somente, quando, na verdade, são temas universais “É saber que a gente hoje passa a ser reconhecida como feminista, mas a gente é chamada só pra falar de feminismo em seminários, encontros, espaços, plataformas literárias”, afirma Paloma. “E são mulheres que estão ocupando outros espaços, da arte, da rua, a gente quer falar sobre estética.”
A revista Eneida é inspirada na escritora paraense Eneida Moraes, que nasceu em 1904, em Belém, e morou durante anos no Rio de Janeiro, com intensa atividade política durante a ditadura civil-militar implantada por Getúlio Vargas. Paloma diz que, além do espaço de escritora, é importante conquistar cada vez mais mulheres leitoras e recomenda. “Eu acho que a mulher deve escrever literatura, escrever o que quiser. Todas nós temos que escrever pelo menos uma frase por dia, para se elaborar, refletir, pensar o mundo. E aí, se quiser, faça o seu livro, faça seu blog, faça acontecer.”
Fotos: Kleyton Silva