O segundo texto da série construída somente por autoras traz para o centro do debate uma questão delicada: a necessidade da legalização do aborto no Brasil. A jornalista Wellingta Macêdo expõe os motivos para que a prática seja descriminalizada.
Era dia das mães. Segundo domingo de maio. 9. Aquele número ela jamais esquecerá. Passaram-se 6 anos, mas todo 9 de maio, seja dia das mães ou não, ela lembrará da data com um certo ar de melancolia e resignação. “Fiz o que tinha que ser feito”, repete isso a ela mesma como uma espécie de mantra. É uma sobrevivente. Sobreviveu a um aborto clandestino. Um detalhe importante: ela já era mãe de um menino.

A criminalização do aborto é fruto da cultura machista e patriarcalista brasileira
(FOTO: Klewerson Lima)
Você deve estar se perguntando, aí do outro lado: “Mas por que ela fez isso?”, “Assassina”, “Como pôde ter tido coragem ?”, “Ela é mãe!”. Bom, para início de conversa, a prática do aborto existe desde a Antiguidade, segundo a Antropologia. Há indícios da prática de aborto com a utilização de ervas abortivas, o uso de objetos cortantes, a aplicação de pressão abdominal, entre outras técnicas. Isso é assim, até hoje. Segundo; a maternidade não impede que uma mulher faça abortos. De acordo com as estatísticas brasileiras, cerca de 850 mil mulheres abortam e dessas, 64% são casadas; 66% são católicas; 25% são protestantes ou evangélicas e 81% tem filhos. Terceiro; nós vivemos em uma sociedade patriarcal que simplesmente nega à mulher o direito ao seu próprio corpo e o seu poder de escolha. A maternidade é, até hoje, uma imposição na vida das mulheres, sobretudo às mais pobres. O machismo, uma ideologia da sociedade capitalista, educa a nós, mulheres, com a ideia equivocada de que nascemos para parir e para cuidar de nossos filhos porque somos aptas para isso.
“A maternidade não deveria ser uma obrigação, mas sim , uma opção para a mulher.Nesse sentido, decidir se terá ou não um filho deveria ser um direito assegurado à mulher.”
A questão é que nem toda mulher quer ser mãe. A maternidade não deveria ser uma obrigação, mas sim , uma opção para a mulher. Nesse sentido, decidir se terá ou não um filho deveria ser um direito assegurado à mulher. Assim como o direito ao aborto. “Mas, péra aí, você quer que as mulheres tenham o direito a tirar a vida de bebês?”. Não, não é isso.
Há muito preconceito, ignorância e desinformação a respeito do aborto. Por ser um tema extremamente delicado e que mexe inclusive com nossas crenças religiosas, há muitas falácias e mitos em torno do assunto, o que impede um debate mais franco e profundo. Primeiro, não se defende o aborto pelo aborto. Não conheci nenhuma mulher, até hoje, que bata no peito orgulhosa de ter feito um aborto. Principalmente porque a maioria das mulheres, no caso do Brasil, tiveram que se submeter a abortos clandestinos, já que a legislação brasileira proíbe a prática, considerando-a crime e com pena prevista de 1 a 3 anos. Há exceções apenas em caso de gravidez de risco para a mulher e estupro.
“As mulheres pobres das periferias, favelas, cuja maioria é negra, trabalhadora, assalariada e mãe, correm todo o tipo de risco na hora da realização do aborto.”
O problema aí é que: 1- As mulheres fazem aborto, independente da legislação proibir ou não. Há um negritado recorte de classe nesta questão, pois enquanto as mulheres ricas realizam seus abortos em clínicas particulares com toda a estrutura necessária, as mulheres pobres das periferias, favelas, cuja maioria é negra, trabalhadora, assalariada e mãe, correm todo o tipo de risco na hora da realização do aborto. Muitas morrem em verdadeiros açougues clandestinos. Se sobrevivem, correm o risco de serem presas.
2- Legalizar o aborto e descriminalizá-lo não significa que todas as mulheres vão sair abortando por aí. Esse é mais um dos mitos criados em torno do assunto. Significa assegurar, principalmente para as mulheres mais humildes, que em caso de ela decidir-se pela prática do aborto terá todas as condições necessárias para isso, sem correr risco de morte. Em países onde o aborto é legal como, por exemplo, o Uruguai, onde a lei que o assegura está em vigor desde 2012, mais de 6.000 abortos seguros foram realizados sem nenhum registro de morte.
“A maternidade pode ser sublime, quando decidida pela mulher, e não imposta”.
Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), cerca de 19 milhões de abortos inseguros são realizados e 70 mil mulheres no mundo morrem por conta disso. Descriminalizar o aborto, não punindo as mulheres pobres, da classe trabalhadora, é o primeiro passo para desmistificar mitos e lendas sobre o assunto. O aborto é uma questão de saúde pública e não caso de polícia.
Homens e mulheres, desde jovens, precisam aprender educação sexual, saber utilizar métodos contraceptivos que estejam disponíveis a ambos. No Brasil, a cada dois dias, uma mulher morre por causa de um aborto clandestino. Legalizar o aborto em nenhum momento se contrapõem ao fato de ser mãe. Ao contrário. Assegura-se com a prática legal sua liberdade de escolha, sua compreensão acerca de seu corpo e seu poder de decidir se deseja ou não ser mãe. A maternidade pode ser sublime, quando decidida pela mulher, e não imposta. Essa é uma luta árdua, difícil, porém,extremamente necessária, afinal, estamos falando de vida. É pela vida das mulheres!
Wellingta Macêdo é jornalista, assessora de comunicação, atriz, militante do Movimento Nacional Quilombo Raça e Classe e do Movimento Mulheres em Luta (MML)