A representação política da mulher e a cobertura midiática é o tema do artigo de Gabriela Sobral, jornalista e militante do movimento feminista.
A mídia deveria ser a instância de favorecimento e abertura do diálogo entre Estado, cidadãos e instituições, a fim de promover o debate na esfera pública com pluralidade, responsabilidade e considerando a importância social dos fatos. Ok. Mas a coisa funciona bem diferente. Ainda mais no contexto paraense, em que os meios de comunicação, velhas oligarquias e visões retrógradas convivem como irmãs.

A atuação da mulher na política ultrapassa os estereótipos dos meios de comunicação e exige novas representações para combater preconceitos (Foto: Kleyton Silva)
Um exemplo dessa realidade é a publicação da charge feita para o portal do jornal Diário do Pará, o DOL, na qual a candidata à prefeitura de Belém, Úrsula Vidal, da Rede Sustentabilidade, a única mulher ilustrada, aparece de maneira fetichizada em um ringue, enquanto os candidatos são os lutadores protagonistas. A inferiorização da mulher na política não se encerra em um único caso, no entanto. Se pegarmos um curto espaço de tempo, veremos outros exemplos.
A deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) foi alvo do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), quando este disse que não a estupraria, pois era “feia”. Em uma plenária, a deputada federal Jandira Feghali teve o braço segurado e foi jogada para trás pelo deputado Roberto Freire (PPS-SP); e, durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, não eram feitas apenas alusões a sua atuação política, mas também xingamentos misóginos que chegavam a questionar até mesmo sua sexualidade e aparência física.
Essa liberdade de expressão que insistem em defender é apenas um simulacro, pois a única liberdade garantida é a de empresa
Neste cenário, podemos criar um mar de problematizações, tamanho o desprezo à condição feminina, mas existem dois pontos latentes a serem destacados: a desqualificação intelectual da mulher e a representação misógina, travestida de humor. Essa liberdade de expressão que insistem em defender é apenas um simulacro, pois a única liberdade garantida, nesse caso, é de empresa e não de imprensa ou, pior ainda, uma opinião individual.
A comunicação enquanto direito público e humano vem conquistando um ordenamento jurídico, principalmente, após o Relatório McBride, de 1980, por isso, ilustrações degradantes não podem ser admitidas. Como enfatizou o professor Venício de Lima, professor de Ciência Política e Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), a grande mídia “distorce e omite informações, sataniza movimentos sociais, partidos e grupos de pessoas que não compartilham de seus interesses, projetos e posições e, assim, estimula a intolerância, a radicalização política e o perigoso estreitamento do debate público”.
A charge, longe de corresponder a um tipo de humor inteligente, não contextualiza o debate eleitoral. Alguém que observa a ilustração e não conhece a candidata poderia enxergar ali simplesmente a personagem feminina representada como uma mera ajudante de palco, uma vez que esta se encontra, literalmente, fora da disputa, fora do ringue, com o corpo sexualizado, “vestido” com trajes de banho e exposto; claro, porque o que faz uma mulher se não mostrar o corpo e usá-lo como forma de reconhecimento?
Parece que ainda não foi concedida à mulher sua permanência na esfera pública; a ela é oferecida a “parte que lhe cabe neste latifúndio” ou o posto de primeira dama
Tipos de mensagens como essas impedem novas possibilidades representativas e criam um vir a ser imposto por homens e vozes que não representam as mulheres, destituindo-as do papel de narradoras de suas próprias histórias. A ilustração, também, secundariza e esvazia a candidata como sujeita, tendo sua exposição corporal como principal signo. O também candidato Cleber Rabelo, do PSTU, emitiu uma nota em suas redes sociais na qual repudia também a charge publicada. “Não podemos admitir que tentem desqualificar ou menosprezar o protagonismo feminino. Não podemos mais admitir a objetificação e a sexualização do corpo das mulheres”, afirmou.
Para a teórica feminista Teresa de Lauretis, no texto “A tecnologia do gênero”, a mídia, assim como a literatura, o cinema e o meio acadêmico, são lugares de produção de sentido e operam como criadores de representações, logo, o lugar do discurso vira um espaço de disputas de significados. Portanto, essa não será a primeira nem a última vez que veremos as reproduções de estereótipos serem justificadas pelo humor e pela capa da liberdade. Parece que ainda não foi concedida à mulher sua permanência na esfera pública; a ela é oferecida a “parte que lhe cabe neste latifúndio” ou o posto de primeira dama.
A formação de hierarquias necessita de uma constante vigilância dos movimentos e a afirmação de um olhar político de denúncia das diferenças
A disputa vai para além do embate eleitoral, trata-se de resistir para garantir os direitos das mulheres, ainda frágeis em legitimidade, e construir a opinião pública enquanto arena democrática. Daí a relevância dos canais alternativos de informação, apoiados pelo engajamento dos movimentos sociais e diversas instâncias, funcionando como atores importantes para a estruturação de uma organização social.
O cenário político não é promissor, as mulheres ocupam apenas 63 cadeiras, de um total de 594 no Congresso Nacional. Vemos que a formação de hierarquias necessita, portanto, de uma constante vigilância dos movimentos e a afirmação de um olhar político de denúncia das diferenças, que quebre as instituições midiáticas como instâncias únicas da opinião. Esse olhar, de acordo com a crítica literária Beatriz Sarlo, age em mudanças estruturais da esfera pública; “como intervenção para a mudança no terreno dos discursos e das práticas, o novo também se vê obrigado a produzir o seu lugar”.
Gabriela Sobral é graduada em Comunicação Social – Jornalismo e mestranda em Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Possui pesquisas nas áreas de gênero e educomunicação, com o trabalho “Viva Maria: uma voz em prol das mulheres no rádio” e coordena os projetos “Leia Mulheres – Belém” e “Imaginárias – um encontro entre narrativas imagéticas e literárias com referência no trabalho de escritoras”.