Caso Sefer revela prática de exploração de crianças na Amazônia
Luiz Afonso de Proença Sefer, médico e atualmente deputado estadual do Pará pelo Partido Progressista (PP), teve reestabelecida sua condenação a 21 anos de prisão pela prática do crime de estupro de vulnerável em continuidade delitiva. A decisão foi proferida pelo ministro relator do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Joel Ilan Paciornik, em 9 de março deste ano.

Meninas pobres são trazidas do interior para a capital para trabalhar em troca de promessas de um futuro melhor (Foto: Kleyton Silva)
Sefer havia sido absolvido no ano de 2011, por 2 votos a 1 pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA), que entendeu que não havia provas suficientes para condená-lo e por desconsiderar a palavra da vítima. Ao julgar procedente o recurso especial interposto pelo Ministério Público do Pará (MPPA), o ministro Paciornik restabeleceu a condenação de Sefer proferida em 08 de junho de 2010, pela juíza da Vara Penal de Crimes Contra Crianças e Adolescentes de Belém, por entender que havia provas suficientes para considerá-lo culpado. Nessa ocasião, a palavra da vítima foi então entendida como prova relevante e que, em conjunto com laudos periciais e psicológicos, atestaram o crime cometido.
A menina havia sido “encomendada” do interior para servir de “dama de companhia” para a filha do político.
O polêmico caso, por envolver um poderoso político da capital paraense em um escândalo de abuso sexual de uma menina de 9 anos de idade, escancarou os limites e as tensões de uma tradição da região amazônica envolvendo o trânsito de crianças para trabalhar em casas de famílias abastadas da capital. A menina havia sido “encomendada” do interior do Pará para servir de “dama de companhia” para a filha do político.
Conforme a decisão divulgada, Sefer afirmou reiteradas vezes que trouxe a vítima para que ela pudesse ter melhores condições de vida na capital. Aproveitando-se da situação de vulnerabilidade em que se encontrava a criança, prometeu cuidados e oferta de estudo que se revelaram, na realidade, sucessivos abusos sexuais e exploração de mão-de-obra ilegal. A situação vigorou por quatro anos até que a vítima fugiu e as denúncias foram divulgadas.
CRIAS DE FAMÍLIA
As “crias de família”, segundo a antropóloga Luísa Dantas, consistem em uma prática social em que meninas e meninos provenientes de famílias de baixa renda, em sua maioria, e residentes do interior do Estado do Pará, idealizam na vinda à capital belenense uma melhora de condições de vida. A promessa de bem-estar para essas crianças está atrelada a uma troca entre trabalho por oferta de estudo, alimentação e moradia junto às famílias de classe média ou alta.
O discurso prometido pelas famílias que as recebem costuma ser “filantrópico”, mas oculta práticas de violência
Às “crias” é reservado o espaço para o trabalho, em geral, doméstico, como o de babás dos filhos dos patrões, como teria sido o caso da criança trazida por Luiz Sefer. O discurso prometido pelas famílias que as recebem costuma ser “filantrópico”, mas oculta práticas de violência (sexual, física, psicológica e moral) e de exploração (de trabalho infantil e sexual).
Os prejuízos gerados após o trânsito dessas crianças são tantos e diversos que, com o passar dos anos, a identidade das “crias” se confunde entre serviçais e entes que passam a ser considerados “quase” da família que as “adotou”. Assim, quando convém aos interesses dessas famílias, ora são tratadas como “filhas de criação”, ora como “criadas/ empregadas domésticas”. Já que a prática não faz jus à remuneração pelos serviços prestados, descanso ou quaisquer outros direitos que configure relação de trabalho, essas crianças passam a habitar em uma espécie de penumbra jurídica. Ou, melhor dizendo, na ilegalidade.
É uma prática social ambígua que, embora criminosa, é naturalizada na região amazônica
Cabe questionar: se essa relação não é trabalhista, não é de parentesco e, em alguns casos, tampouco vem a ser de afeto ou afinidade, que tipo de relação é essa que se estabelece entre as “crias de família” e as pessoas que as “adotam”?
Não é relação de trabalho, pois não se verifica a presença de direitos e deveres entre as partes. Também não se pode falar em adoção, pois, via de regra, não existe processo oficializado de tutela. É, portanto, uma prática social ambígua que, embora criminosa, é naturalizada na região amazônica e depende da índole de quem recebe essas crianças para que se possa identificar maior ou menor grau de violências nas relações.
A predileção por meninas é um fator de destaque nesta prática, conforme apontam as pesquisadoras Angélica Maués e Luísa Dantas. Esta preferência acontece por dois motivos: o mito de que as mulheres é quem devem executar as tarefas domésticas e a crença de que mulheres são facilmente “domesticadas”. Assim, reforçando os estereótipos e papéis de gênero que associam mulheres à fragilidade, constrói-se o cenário propício para exploração e abusos, além de perpetuar um modelo de família patriarcal em que é reservado aos homens o sustento da casa em troca de sexo forçado, evidenciando o que a literatura feminista tem chamado de “cultura do estupro”.
O silêncio, o medo e a vergonha costumam ser o principal recurso de que se valem os agressores
Tidas como “não-sujeito”, estas crianças simbolizam um modo de escravização em que seus corpos são percebidos como algo “disponível”. Contudo esta relação nem sempre se dá mediante a violência explícita. Os “agrados” em forma de presentes e até mesmo a possibilidade de estudo constituem uma espécie de compensação que prendem essas meninas ao ambiente de opressão. Em última instância, há a indução a permanecerem na casa em que foram “criadas” por “gratidão”.
O silêncio, o medo e a vergonha em tornar pública a relação quando se torna abusiva, violenta e criminosa, costumam ser o principal recurso de que se valem os agressores para persistirem nas práticas delitivas. O estupro, tão frequente nesses contextos, passa a ser uma prática naturalizada que, por acontecer “às escuras”, se torna difícil de ser interrompido.
O acusado sustentou a moral de “bom pai e esposo, temente a Deus”
O caso Luiz Sefer reúne todos esses elementos. E, por isso, é complexo: além de envolver os crimes de estupro de vulnerável (menores de 14 anos), tendo tido o julgamento prolongado por oito anos até ser confirmada a sentença condenatória, está associado à prática das “crias de família”.
Enquanto se passava quase uma década desde que as denúncias vieram a público, o acusado, gozando da presunção de inocência a que fazia jus, sustentou a moral de “bom pai e esposo, temente a Deus”. Elegeu-se deputado e seguiu o curso de sua vida, ao passo que a vítima – para que tivesse o mínimo de sua dignidade restaurada – teve que esperar todo esse tempo para que sua palavra (único recurso de que dispunha), finalmente, fosse ouvida.
Twig Lopes é pesquisadora, advogada e mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Integra os grupos de pesquisa “Cabano de Criminologia” e “Questão Criminal” (CNPq/UFPA). Atua preferencialmente nos temas Direitos Humanos, Criminologia Crítica e Teorias Feministas.
Textos consultados:
“Pais”ou “Patrões”: Um estudo sobre “crias de família” na Amazônia, de Luísa Maria Silva Dantas.
Uma mãe leva a outra (?): Práticas informais (mas nem tanto) de “circulação de crianças” na Amazônia, de Maria Angélica Motta-Maués.
Caso Sefer: a íntegra da decisão, de Lúcio Flávio Pinto.